sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Assassinato de moradores de rua expõe problemas sociais


A Polícia Militar de São João del-Rei apontou três moradores de rua como os prováveis autores do assassinato dos sem-teto Ronaldo Marcos do Carmo e outro homem ainda não identificado. Dois deles estão presos: Wenderson Pacífico do Sacramento e Paulo de Freitas Santos. Carlos Alberto Gonçalves está foragido. O caso traz à tona o abandono e a iniqüidade social. Os dois assassinados viviam há meses com um punhado de lonas e colchões sob a ponte que liga a Rua Antônio Rocha à Avenida Leite de Castro, no Bairro das Fábricas.
Segundo o delegado de Polícia Rodrigo Crivellari de Pinho Tavares, o homicídio foi motivado por uma dívida envolvendo dois litros de aguardente, quatro maços de cigarro e a quantia de R$ 5,00. “Em virtude disso, teria havido uma briga sob a ponte, levando à morte de dois sem-teto”, contou o delegado.
Depois do assassinato, aconteceu, na Praça da Estação, um desentendimento entre os autores e Paulo de Freitas foi espancado. “Estou há um ano na Delegacia e não vi casos desse tipo. Consideramos um acontecimento isolado. Normalmente, temos apenas ocorrências de confusões e perturbação da ordem”, comentou Rodrigo Crivellari.

Questão social
Cerca de 15 desabrigados vivem em São João. Segundo se verifica, carecem de todos os elementos constituintes dos direitos humanos, como saúde, moradia, educação, saneamento básico, cultura e emprego. O drama das vítimas podia ser visto pelas centenas de pedestres que passavam, diariamente, pelo local. Mesmo assim, eles eram invisíveis. Ainda que dormindo na rua, despertavam efêmeros sentimentos de pena ou ações de caridade.
Descompromisso do poder público, indiferença da sociedade e ausência de políticas de proteção aos direitos humanos são algumas das questões que perpassam a condição de abandono das vítimas.

Passagem
A secretária de Assistência Social e Promoção Humana, Aline Aparecida Gonçalves, informou que a Prefeitura Municipal dá auxilio ao migrante não residente no município, pagando o valor do transporte para que o desabrigado retorne à casa dos familiares. “Abordamos, conversamos com eles, buscamos encontrar sua família e oferecemos documentos. Mas a situação é muito mais complexa: eles não deixam que as equipes se aproximem. No lixão, existem pessoas na mesma situação. Eles não deixam que a gente ajude-os. Ai fica difícil”, disse a secretária.
Os desabrigados, em sua maioria, são dependentes químicos, seja de droga ou de álcool, e romperam os laços com a família por causa desses vícios. De acordo com Aline Gonçalves, eles também não estão bem psicologicamente. “Não temos como obrigar que saiam dali, eles têm o direito de ir e vir. Oferecemos alimentos, mas não temos como abrigar a todos. Muitos deles são viciados e não aceitam ajuda”, afirmou a secretária.
A assistente social do Centro de Referência Especializada de Assistência Social (Creas), Nara Martins Silva, afirmou que a Prefeitura não possui uma política pública de ressocialização desses indivíduos. “Porém, o contexto neoliberal não favorece as políticas sociais. Aí, ficamos de mãos atadas”, reconheceu a assistente social. Para ela, a população precisa se envolver ativamente e reivindicar educação, saúde e moradia.

Invisibilidade
Há uma dupla negação: os desabrigados estão frustrados com a sociedade, que também não se interessa por eles. Segundo Nara Silva, muitas pessoas querem, na verdade, tirar o problema do lugar. “A tendência de não querer ver da sua janela a pobreza e a exclusão de outra pessoa é normal. Eles querem tirar os desabrigados do local, nos dizem: ‘não interessa para onde vocês vão os levar, só não queremos que eles fiquem aqui’. Respondemos que não podemos transferir o problema de lugar. Precisamos de uma solução muito mais ampla”, enfatizou.
O coordenador do Centro de Pesquisa sobre Desigualdade Social da Universidade Federal de Juiz de Fora, Jessé Souza, explica que existe um "racismo de classe" em todas as sociedades contemporâneas, o qual é especialmente perceptível em comunidades desiguais e singularmente injustas como a brasileira.
Para ele, a principal razão da invisibilidade dos moradores de rua é a não percepção da construção social das desigualdades. “Isso termina por responsabilizar a vítima pelo próprio fracasso, como se fosse algo desejado”.
No entanto, Jessé reforça que ninguém escolhe ser humilhado e reduzido à esfera do subhumano. “Culpar a vítima é negar a responsabilidade que a sociedade possui na condução das escolhas públicas e políticas que reproduzem a pobreza e a exclusão”, criticou.
“Entre nós culpar a ‘corrupção no Estado’ como causa de todos os problemas (como se não existisse corrupção no mercado e em todos os paises) é um modo cômodo de transferir a responsabilidade para os outros (os ‘políticos’) enquanto todos podemos exercer a ‘maldade’ diária do ódio e desprezo de classe sem dor de consciência”, argumentou o sociólogo.

Trabalho e rua
Os sem-teto não têm acesso ao trabalho por causa da dependência química. Alguns deles estão tão envolvidos com as drogas que não tentam voltar à sociedade. “O álcool, o desemprego e o rompimento familiar agravam ainda mais os problemas deles. Então, na rua, as pessoas já abandonaram a sociedade, mercado formal de trabalho e família. Esta, não consegue restabelecer o vínculo por conta da dependência que tomou o morador de rua e ele também não consegue se apresentar à família enquanto cidadão, porque não tem emprego, moradia e renda”, analisou Nara Silva.
Eles permanecem na rua, uma vez que são lugares dinâmicos, que propiciam a possibilidade de recursos financeiros por meio da esmola, filantropia e da caridade de alguns. “São estratégias de sobrevivência para manter, seja a alimentação, seja a dependência química”, explicou a assistente social.

Oportunidade
Membros da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis (Ascas) conversam, constantemente, com os moradores de rua, tentando convencê-los a mudar de postura, entrar para a associação. Segundo o administrador da Ascas, Márcio Faria da Silva, os associados falam a eles como é feito o trabalho e das vantagens que os sem-teto podem ter. “Mas tem uns que cata para tomar uma pinga, eles preferem receber todo dia para beber. Não por semana, como fazemos. Para entrar na Ascas tem regras, somos organizados. Exigimos um padrão de conduta ao qual eles não querem se adequar”, explicou Marcos.
Contudo, três membros da Associação são desabrigados. Dentre eles está Rosângela Maria da Silva, de 35 anos, que entrou na Ascas para juntar dinheiro a fim de morar numa casa. Ela conta que vive sob uma ponte em São João há três anos com mais duas pessoas. “Um ficou doido e o outro não trabalha”, relata.
Rosângela disse que foi expulsa de casa pelos irmãos, porém não sabe precisar o motivo. “Me obrigaram a sair, falaram que eu tinha que me virar e eu fui para a rua”. Ela já trabalhou como doméstica, mas parou porque ganhava pouco. A moradora de rua pediu emprego na Ascas para sair da rua. “Está começando o período de chuva e eu estou doente, não posso mais ficar na beira do córrego”, afirmou.
A recém empregada da Ascas ressaltou que a Prefeitura Municipal nunca fez uma visita a ela. “Não nos ajuda em nada. Se quisermos comer, temos que pedir para os outros na rua, porque a Prefeitura não faz nada”, reclamou.

"Créditos da foto para Natália Giarola. Essa reportagem exigiu uma boa pesquisa antes de ser feita. Do crime, eu me propûs uma análise da condição dos moradores de rua, para descobrir o que a prefeitura faz, se esse serviço seria suficiente, como se articula com a realidade do município. Além disso, queria problematizar o envolvimento da sociedade e das instituições na questão. Encontrei dificuldades para trazer diversidade de falas para o texto, tive a sorte de entrevistar duas assistentes sociais conscientes sobre a situação e aí a minha tese foi sendo embasada.
No texto, dá para perceber que a Prefeitura se limita a dar a passagem para os sem-teto que tem família em outra cidade. Para mim, ficou claro que não há uma pp. de ressocialização desse indivíduos totalmente desestruturados social e psicologicamente, a Secretaria se preocupa apenas em trasferir o problema de lugar. São João é pólo microrregional e, como tal, deveria dedicar maior atenção aos moradores de rua. O que eles precisam é de um trabalho de inclusão, que os municie de educação para arrumar um emprego, além de moradia e alimentação. Em outras palavras, as bases mínimas para que esses sujeitos se estruturem psicológicament e coloquem suas vidas de volta num caminho.
A sociedade tambem tem sua parcela de culpa, com sua postura indiferente e absorta. As instituições não buscam alternativas para humanizar os sem-teto, agendando no poder público certas demandas por moradia e dignidade. Ao contrário, as pessoas resignam-se em suas casas e reclamam da inércia da Prefeitura. Não há ações de nenhum dos lados e coisa vai-se tocando. A realidade só se torna pública quando um assassinato chama a atenção, efêmera é verdade, da cidade para os que deitam e dormem em suas ruas, sob marquises e pontes fétidas."

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