sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Festa de Congado: Inculturação e resistência

Os tambores tocam ao longe. Em meio às homenagens a Nossa Senhora do Rosário, grupos afro-descendentes cantam a memória de seus antepassados, curam suas dores e pedem proteção. O batuque afasta a chuva, que teimava em querem chegar, e o sol abre espaço entre as nuvens, secando as gotas d’água que caíram minutos antes. As pessoas começam a dançar e, às 13 horas, as bandas de Congado já encheram as ruas tortuosas e inclinadas de Resende Costa. As senhoras debruçam-se nas janelas, donas-de-casa interromperam o serviço e crianças perguntam, maravilhadas, o significado de tanta música e dança.
Os 26 grupos carregam seus estandartes, batuques, bumbos, violas, sanfonas e demais instrumentos. Integrantes pulam e dançavam freneticamente. Misturados em uma mesma banda, figuram crianças, jovens, adultos e idosos com mais de 70 anos. A Festa abençoa a pluralidade de pensamentos, raças, idades e cultos. Juntam-se mais turistas, congadeiros e curiosos à comemoração, alguns se escondem da luz ardida do sol, outros acompanham os desfiles. Visto de cima, o cenário tem as belas igrejas de Resende Costa, um céu que vai, lentamente, se livrando das nuvens e, na aglomeração, cores de uniformes vermelhos, brancos, azuis, verdes, roxos e amarelos.
Os congadeiros vestem-se com asseio, cada grupo traja seu uniforme de festa, com chapéus, ornamentações, fitas e adereços. Algumas mulheres trajam vestidos longos, brancos e têm o cabelo preso, enquanto os mais velhos se apresentam com ternos e gravatas. Crianças erguem imagens de santos protetores, com muitas rosas e enfeites.
O capitão do Grupo de Congado Catupé Cacunda, Francisco Valentim, de 86 anos, sobe o morro entoando cantigas de escravos, mitos de guerrilheiros africanos e aparições míticas de santos. Sua voz não enfraquece minuto algum, ele homenageia seus tataravôs e sua comunidade. “O Congado é uma dança de fé, vinda dos antepassados, deixada para mim pelos avôs dos meus avôs. A Congada, para mim, é uma religião e uma obrigação. Eu acredito muito em nossa tradição, em São Benedito e em Nossa Senhora do Rosário”, contou o capitão.
Chama a atenção uma banda grande, com muitos instrumentos. Arma-se uma roda ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, congadeiros e congadeiras, vestidos de preto e branco, tocam e dançam em movimentos circulares. O capitão, com um sorriso no rosto, abre um corredor ao meio, onde passam meninos e meninas fazendo com os pés uma coreografia e são muito aplaudidos.
Um senhor faz movimentos em zigue-e-zague, tocando um bumbo do outro lado da igreja. Ele puxa uma banda, toda vestida com ternos brancos, quepes de marinheiro e fitas coloridas. Segundo o capitão do Grupo de Congado Marujo Marinheiro Sereia do Mar, Carlos Evandro do Nascimento, “a música representa as tradições africanas de raiz. São de cativeiro, época da escravidão. Isso mexe com o nosso sentimento. Dessa forma resgatamos aqueles elementos que estavam ficando para trás. Marujo é usado porque os escravos vinham para o Brasil dentro de navios negreiros, usamos roupas em sua homenagem”.
Maria Aparecida, de 75 anos, admira da janela de sua casa os grupos passarem. “Vejo esse festa daqui há muito tempo. Há cada dia que passa, ela melhora. A irmandade do Rosário convida muitos ternos de outras cidades para dançar nesse dia. Sempre fico admirada porque gosto muito”. No interior de sua residência, ela mostra uma das congadeiras mais tradicionais de Resende Costa, Duca. Ela tem 104 anos e já não acompanha mais a festa por problemas de saúde. Mas Aparecida conta que, alguns anos atrás, Duca ficava na porta da casa dançando ao som dos tambores e era cumprimentada por todos os capitães.
A Rainha Conga, Maria Cristina, de 77 anos, vai subindo a rua, atrás de uma Banda. Ela lembra que é Rainha há 45 anos e participa de vários grupos de Minas Gerais. “Fico muito feliz de encontrar essas pessoas tão maravilhosas e fazer tantas amizades. Há cada ano, é mais alegria. É uma festa da época dos escravos. Como Rainha Conga, eu me considero escrava”.
À tarde, o tempo quente não espanta as Bandas. Elas já se espalharam pela a cidade. De todos os cantos se ouvem tambores, o trânsito foi interrompido e os grupos passam, um atrás do outro, saudando os cidadãos e convidando-os a se juntarem. As bandeiras são beijadas por algumas pessoas. Resende Costa saúda os congadeiros, guardiões de uma tradição tão antiga quanto a chegada dos africanos no Brasil, defensores e patronos da cultura brasileira;

Box: Religião
A imagem de Nossa Senhora do Rosário representa a proteção. Quando os negros chegaram ao Brasil, eles se apegaram à devoção para ajudar a passar as tormentas da escravidão. “Mantemos essa homenagem a ela até hoje”, afirma o vice-presidente Antonio Carlos da Silva da Banda de Congado de Marujo de Nossa Senhora do Rosário e Santa Ifigênia, de Congonhas.
Para o capitão da Banda de Marujo, Carlos Evandro, Nossa Senhora do Rosário representa tudo, é um laço de fé e humildade. “Quando saímos para festejar sua santidade, dá vontade de chorar, ficamos muito emocionados, porque sabemos que ela está alegre por estarmos reunidos em seu nome”, disse.
Box: Organização
Para manter a tradição vida, muitos grupos enfrentam dificuldades relativas ao financiamento e desconstrução de suas comunidades. Alguns vão perdendo componentes porque os jovens se interessam menos pela tradição. No entanto, criar associações foi um modo que os capitães encontraram para receber repasses, comprar instrumentos, roupas e pagar o transporte das bandas. Antônio Carlos relata que os integrantes fazem os tambores e pegam donativos. Depois de registrar o grupo, passaram a receber subvenção municipal e estadual. “Agora, estamos lutando para obter a federal para podermos nos organizar melhor e divulgar nossas tradições. Nós temos oficinas de Congado, ensinamos afazer instrumentos, estandartes, roupas”, afirmou.
O capitão do Grupo de Congada Santa Ifigênia, Willian Fernandes da Silva, diz que anda por Minas Gerais inteira e outros Estados levando sua cultura. “A maior dificuldade é de transporte, mas não é muito frequente. A Prefeitura nos dá apoio para nos deslocarmos e renovarmos nossas vestimentas”, informou.
Contudo, essa forma de financiamento ainda é exceção. Francisco Valentim enfatiza que, em Arapari, o poder publico pouco faz para dar suporte aos grupos de cultura afro-descendente. “Preferem repassar verba para o futebol”. Ele conta que sua banda pagou a viagem de 700 km para Resende Costa. “Eu não acredito muito em Prefeitura. Nós mantemos pela força e garra de nosso povo”.



Um comentário:

  1. Muito boa a reportagem,
    legal a iniciativa de resgatar a cultura negra em matérias jornalísiticas,
    O povo tem que ser lembrado e essa manifestação nao pode acbar,

    as fotos estão maravilhosas,

    parabens

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