domingo, 23 de maio de 2010

É necessário ficha para morrer?

Aventuras nebulosas entre as burrocracias do SUS

*Gonzo feito em parceria com Vinicius Tobias
anotaçõesburocraticas.blogspot.com

Andar rápido, respirando o ar frio de 05h40min, logo após um café quente, me fez chiar um pouco. Soma-se isso ao fato de que sofro, desde pequeno, de bronquite, sinusite e rinite. Precisava, pelo menos, de uma nebulização simples, com soro fisiológico, para dar uma acalmada. Dirigi-me, então, ao posto de saúde mais próximo, a Policlínica de Matosinhos, levaria, lá, o primeiro fora da manhã. Antes, conto um pequeno fato ocorrido uma hora atrás.

Madrugada na fila
São 04h55min de segunda-feira, o atordoamento do sono me é espantado pelas vozes e risadas turbulentas que ouço da Policlínica do Matosinhos. Um grupo, a maioria de idosos, conversa constantemente, esperando o tempo passar. Uma senhora morena, com cerca de 55 anos, cabelos grisalhos começando a tomar conta da cabeça, se diverte com o fato de ter chegado ao Posto durante a noite passada e ter dormido no banco duro e frio.

Um senhor de calça jeans batida, já bastante gasta, cabelos quase que completamente brancos e pêlos volumosos dispostos ao redor da orelha, reclama do aviso colocado mais cedo na parede.
- Deveriam ter colado aquele papel na sexta-feira. Aí a gente chegava aqui no sábado para conseguir marcar uma dessas sete consultas.

Em meio a conversas sobre pensão alimentícia e um crime distante ainda lembrado, alguém diz:
- O certo é a gente não adoecer para não depender deles. Senão estamos ferrados.
O clima soturno se deita, novamente, sobre o grupo. Todos parecem, subitamente, lembrar porque estão naquela fila. O atendente chega de bicicleta, termina de abrir a porta e ocupa seu posto. A fila logo é formada. As rodas de conversas se desfazem.

Os sete que conseguem marcar a consulta saem sem esconder o sorriso que carregam no rosto. Os outros, para não perder a espera, ficam apenas por um resquício de esperança que lhes resta, ou por uma palavra amigável do atendente.
- É mais uma noite de sono perdida e mais um dia que fico sem médico. Resmunga um senhor ao passar pelo meu lado.

Uma pequena idosa, com camisa moletom listrada, bolsinha branca e uma calça preta, chega às 05h30m. Ela passa ao meu lado e me saúda com um meneio de cabeça. Faz o mesmo com todos ao seu redor. A pequena senhorinha vai à parede, onde estão colados os recados, os olha e volta com um rosto cansado. Seus olhos verdes miram o chão e os dedos remexem um exame, que, depois, ela me diz ser de sua velha mãe. A idosa tinha a esperança de conseguir entrega-lo para um médico. Cedo meu lugar na fila, mas de nada adianta.

Na minha vez, o atendente de óculos, camisa pólo amarelo-escura, que fica atrás do vidro sujo e gasto por lamentações, me cumprimenta e informa que as sete consultas já foram marcadas. Outras marcações só amanhã.
- Infelizmente não, não há médicos. Sugiro que você venha cedo. O povo está dormindo na fila para conseguir marcar uma consulta.
- Isso é um desrespeito. Mas fazer o quê.

Fala, com ar cansado, o atendente, sentindo o peso de uma estrutura caótica sobre suas costas. Ele é o porta-voz de um governo desorganizado, que faz seu povo dormir sob o sereno frio para tentar, com sorte, visitar alguns minutinhos um santo da cura. O homem, que deve passar pelas mesmas dificuldades de todos os desacreditados que saem do posto, revela, facilmente, seu descontentamento com algo que ele, aparentemente, não pode mudar, com um mundo que ele sabe não ser o ideal.

Despachado rapidamente
De volta à minha história, cheguei pouco depois à Policlínica de Matosinhos. Fiquei esperando no balcão de atendimento, onde, no momento, não havia ninguém, quando chegou ao meu lado um senhor. Ele me perguntou o que queria e eu respondi, ofegante, que estava em crise e precisava de uma nebulização. Ele disse, então, que eu precisava de receita para o tratamento. Pediu para eu me dirigir à Santa Casa e ir ao pronto atendimento. Sim! No centro! Disse a ele que estava sem dinheiro para o ônibus. Ele lamentou...

Santa Casa – Precisa de ficha para morrer?
Cheguei à Santa Casa chiando bem mais. Nada grave, claro. Havia apenas três pessoas na sala de espera e fui logo explicar minha situação ao atendente, que me cortou na lata: “Os atendimentos começam 7 horas!”, falou. Ele estava armado, psicologicamente.
Sentei e esperei. Havia uma mulher, logo à minha frente, com um bebê no colo. Quando o atendente citado trocou de turno com uma mulher, ela vai expor sua situação, provavelmente, pela segunda vez:
-Olha, preciso de atendimento. O menino tá de peito cheio! – diz firme.
-A senhora já foi ao PSF do seu bairro?
-Tava fazendo nebulização com soro, mas num tava adiantando. Aí, hoje piorou e eu fui lá pedir uma consulta e a mulher chegou dizendo: “A ficha acabou”. Precisa de ficha pra morrer, agora?
Felizmente, a criança foi atendida. Após essa conversa com a atendente, duas mulheres estavam conversando e a mãe do bebê que já tava sendo atendido disse: “Eu já chego aqui fazendo escândalo, senão não atendem”.

Pedagogia da burocracia
Fui, então, falar de meu problema, e foi uma cena caricata: a atendente mais velha estava ensinando a moça mais nova, que, aparentemente, era recém-contratada, as burocracias do Posto: quantas pessoas, quais papéis e quais casos poderiam ser atendidos ali. A moça escutava tudo alegre, pois não compartilhava do semblante carrancudo dos outros atendentes e enfermeiros, ainda; não havia sentido ainda o peso de seu cargo, de porta voz da burocracia.

Interrompi a explicação. Disse que estava com falta de ar e que já havia ido à Policlínica e tinham me enviado para cá. Ela me perguntou onde eu morava. Respondi que era no Bonfim e ela retrucou: “Isso é caso de PSF. E seu bairro tem PSF”.

PSF – Desfecho mais ou menos
Lá vai o bronquiteiro subir o morro do Bomfim. Chegando ao PSF, fico admirado com sua organização. Apesar do grande volume de pessoas, o Posto me pareceu efetivo, pois me atendeu de forma humana, a despeito da burocracia. Expus meu problema e minha trajetória à atendente de lá. Ela, por sua vez, prometeu que me ajudaria, se eu esperasse 20 minutos, o tempo da médica chegar.

Esperei. A atendente disse que poderia marcar para mim à tarde, coisa muito justa, já que a sala de espera estava cheia. Mas, se eu não tivesse aguentando, poderia me dar a tão batalhada nebulização. Achei ótimo! Disse que seria atendido à tarde, sem, problemas.

Ela me perguntou, então, em que rua eu morava. Respondi: “nessa mesma rua aqui, João Salustiano”. A mulher, muito preocupada, fez uma cara de “deu errado” e falou que a João Salustiano, mesmo emendado com a rua do PSF, era considerada do Centro, pela Prefeitura. Mesmo assim, ela me permitiu fazer a nebulização.
Mesmo estando preso às burocracias do SUS, o PSF do Bomfim me atendeu humanamente. Eu me sentiria seguro sendo atendido por esse PSF. Se pudesse ser atendido por ele...

"Gosto muito do Gonzo, estilo de jornalismo mais literário, em que o jornalista pode interferir na ação. O texto tem dois momentos, o primeiro fui eu quem vivenciou, cheguei ainda de madrugada no Posto e tentei conversar com o máximo número de pessoas e apreender seus dramas. Depois, fui ao guichê de consultas para ver como era o tratamento dado àquelas pessoas. O Vinicius fez o segundo momento, indo da Policlínica ao Bonfim atrás de uma nebulização. O Gonzo ainda está vivo, precisa de pessoas com coragem e engajamento para ser ressucitado e ganhar força, pois é um modo muito carregado de sentimento de expressar a realidade."

Nenhum comentário:

Postar um comentário