Um retrato das manifestações culturais afro-descendentes em São João del-Rei
Marcelo Alves
A Linguagem dos sinos, a Maria Fumaça com bitola de 32 milímetros, a única em funcionamento no mundo, as orquestras mais antigas do Brasil, as imponentes igrejas barrocas, a arquitetura variada. Esses elementos são parte das tradições de São João del-Rei. Parte. Ou, pelo menos, o que é comentado, divulgado, patrocinado e preservado. Do alto dos montes, da periferia e dos recantos da cidade ecoam, ainda, os batuques dos negros de descendentes de escravos e as rezas de Candomblé e Umbanda.
Abandonados pelo poder público, os movimentos como Congado, Candomblé e grupos de inculturação vão tentando sobreviver. Na luta do dia-a-dia, a memória e a identidade negras são preservadas por pequenos círculos de amigos que investem dinheiro do próprio bolso em vestimentas, em instrumentos, em consertos, em oficinas e em despesas com a sede.
Raízes
De acordo com o folclorista, Ulisses Passarelli, a cultura negra está presente em São João desde suas origens. O Arraial das Mortes foi formado no ciclo do ouro. A economia era movimentada pela mineração e os garimpos, explorados com a força braçal dos escravos africanos. “Em 1704, foram descobertas as minas e, em 1705, começou a extração”, conta o folclorista. Por algum tempo, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário centralizou as tradições africanas. “Em torno dela é que os negros faziam suas comemorações”, diz Passarelli.
Há poucos estudos sobre o desenvolvimento das manifestações afro na cidade. Sobraram apenas as memórias dos movimentos mais antigos e ensinamentos orais transmitidos de pai para filho. É o que conta o presidente da Associação de Congado Santa Ifigênia, Nivaldo Neves, do Bairro São Geraldo. Ele afirma que, na década de 40, existiam grupos de Congado no bairro do Tijuco e na região de Santa Cruz de Minas.
“Teve uma época que se dançou no Centro, na Igreja do Rosário. Mas isso foi se perdendo por falta de incentivo e adeptos”, comenta Neves. Nivaldo garante que o Grupo de Congado Nossa Senhora do Rosário, do Rio das Mortes, tem mais de 200 anos, passando as atividades de pai para filho.
Reconhecimento (ou falta de)
“O Congado é a maior expressão da cultura afro na região”, informa Ulisses Passarelli. Os líderes dos grupos são categóricos ao falar sobre subvenção municipal. “Para perpetuar a tradição, precisamos de incentivos. Mas como não há uma política voltada para isso. Aí, o jovem fica perdido ou, senão, participa e desanima”, argumenta o presidente da Associação de Congado do São Geraldo.
Nesse sentido, o secretário de Cultura e Turismo, Ralph Araújo Justino, reconhece que o poder público está em débito com os grupos afro-descendentes. “Precisamos ajudá-los, mas não fizemos nada, até agora. As dificuldades da prefeitura são muito grandes. Pretendemos, a partir de 2011, convocar o pessoal da cultura afro para poder ter uma atuação mais próxima, inclusive com verba do Fundo de Cultura”, afirma.
O diretor técnico do escritório do IPHAN em São João, Mario Ferrari, informou que o instituto não tem nenhuma política municipal voltada para essas manifestações. “Não temos nenhum projeto de apoio, infelizmente”, lamenta.
Mesmo assim, os grupos vão se mantendo com a ajuda da comunidade, com doações e às despesas de seus integrantes. A presidente do Grupo de Inculturação Afro-descendente Raízes da Terra, Vicentina Neves, relatou que chegou a buscar apoio na Secretaria de Cultura. “Mas eles não nos valorizam. Usam, mas não valorizam”, desabafa.“Não só a afro, mas a cultura folclórica também está abandonada”, sentencia Ulisses Passarelli.
Segundo Nivaldo Neves, os movimentos precisam de um local para oferecer oficinas de pintura, alfabetização, aulas de informática e acompanhamento social. “Hoje estamos tentando adquirir um terreno na prefeitura para fazer as atividades. Temos CNPJ, tudo direitinho e legalizado para receber verba, mas não temos nenhum tipo de apoio da prefeitura”, diz o congadeiro.
Escola e sociedade
As escolas trabalham conteúdo afro no final do ano, perto da data da morte de Zumbi. O restante dos anos não se fala sobre a cultura afro. Muitas vezes, os professores não estão adequados a esse trabalho. “Vemos muito preconceito dentro das escolas. Ouvimos relatos de meninos contando que os chamam de macumbeiros na escola por serem inseridos em religião de matriz africana.”, diz Nivaldo Neves.
Dona Vicentina conta que a UFSJ é a única instituição que tenta apoiar os grupos, oferecendo espaço e acompanhamento por meio de cursos. Mas ela ressalta que isso é insuficiente. “A UFSJ nos ofereceu espaço, mas lá descentraliza o movimento, perderíamos nossas raízes do São Geraldo”, afirma.
Inculturação, o paradoxo católico
Com a indiferença das instituições laicas, os movimentos afro se voltam para a Igreja. Dona Vicentina afirma que algumas paróquias abrem as portas para os grupos. Nivaldo e Ulisses lembram, por outro lado, que a aceitação é recente. “Quando começamos, em 94, não éramos reconhecidos pela Igreja. Com o tempo, conseguimos entrar”, confirma o congadeiro.
Certas paróquias realizam as missas inculturadas. O vigário geral da paróquia de Nossa Senhora da França de Resende Costa, Raimundo Inácio da Silva, explica que a missa inculturada é uma forma de resgatar a riqueza da cultura afro-descendente. “Celebramos a Missa Romana, com introduções de elementos afro”, diz.
A Festa do Divino e a Festa de Nossa Senhora do Rosário permitem o desfile de grupos de congado e de cantos africanos. No entanto, o pároco que nem todos os elementos da crença são autorizados. “É fonte de estudo aquilo que pode ser colocado e aquilo que não pode. Há ritos de outras divindades que não batem bem com o catolicismo. Temos cuidado ao analisar o que pode ser acrescentado na liturgia afro para não virar uma mistura de catolicismo, umbanda, candomblé”, comenta Raimundo da Silva.
A Igreja preserva no momento em que abre as portas e permite que as manifestações aconteçam, enfatiza Ulisses Passarelli. “Mas uma coisa é missa inculturada, outra, é uma sessão de Candomblé, Umbanda ou de Quimbanda. São coisas diferentes. Não vão se estabelecer um dentro do outro”, atenta. Esse momento ecumênico é importante no momento em que respeita as diferenças. Isso permite com que as pessoas conheçam a cultura da periferia.
“A Igreja descaracteriza quando cria amarras para a tradição, quando proíbe que certa coisa aconteça ou define como deve acontecer”, critica o folclorista. A Igreja não pode interferir na manifestação, precisa trabalhar em conjunto e não estipular normas. “Ao mesmo tempo em que a Igreja ajuda a preservar, ela descaracteriza. Sempre foi assim. Isso, eu não sei se muda”, opina. “Dos males o menor, porque houve tempo em que eram proibidas certas manifestações”, acrescenta.
São João abriga também terreiros de Candomblé, Umbanda e Quimbanda. O babalorixá do terreiro do Alto das Mercês, Edimar _______, propõe a inclusão do negro “Mostrar que o Candomblé não é só uma religião, mas uma cultura, um ritmo e uma arte. O candomblé é um museu vivo de cultura imaterial”.
“No princípio, sofremos muita marginalização. Porque, em São João, predomina uma religião de origem portuguesa. Tudo que é oriundo do negro ainda sofre uma discriminação muito grande, apesar de ter pessoas aberta ao diálogo”, enfatiza o babalorixá.
O terreiro foi reaberto há três anos. Contudo, ainda não foi regularizado por falta de verbas. Essas casas são, geralmente, instaladas em bairros mais pobres e marginalizados. “Essas comunidades são mais receptivas. Não temos espaço no Centro, onde predomina o cristianismo. Hoje a marginalização do rito é bem menor por causa dos direitos humanos garantidos pela Constituição e pela Justiça. Mesmo assim, ainda há discriminação”, conta Edimar.
A relação com dos terreiros com a religião católica varia entre as paróquias, de acordo com Edimar. “O que difere muito dos evangélicos, que não tem a tolerância de alguns segmentos da Igreja Católica”. Porém, o babalorixá explica que os afro-descendentes foram levados a abandonar suas tradições. “Já é discriminado por ser negro e, também, por sua religião. Muitos tentam branquear sua negritude e os aspectos de sua cultura”, afirma.
Abandonados pelo poder público, os movimentos como Congado, Candomblé e grupos de inculturação vão tentando sobreviver. Na luta do dia-a-dia, a memória e a identidade negras são preservadas por pequenos círculos de amigos que investem dinheiro do próprio bolso em vestimentas, em instrumentos, em consertos, em oficinas e em despesas com a sede.
Raízes
De acordo com o folclorista, Ulisses Passarelli, a cultura negra está presente em São João desde suas origens. O Arraial das Mortes foi formado no ciclo do ouro. A economia era movimentada pela mineração e os garimpos, explorados com a força braçal dos escravos africanos. “Em 1704, foram descobertas as minas e, em 1705, começou a extração”, conta o folclorista. Por algum tempo, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário centralizou as tradições africanas. “Em torno dela é que os negros faziam suas comemorações”, diz Passarelli.
Há poucos estudos sobre o desenvolvimento das manifestações afro na cidade. Sobraram apenas as memórias dos movimentos mais antigos e ensinamentos orais transmitidos de pai para filho. É o que conta o presidente da Associação de Congado Santa Ifigênia, Nivaldo Neves, do Bairro São Geraldo. Ele afirma que, na década de 40, existiam grupos de Congado no bairro do Tijuco e na região de Santa Cruz de Minas.
“Teve uma época que se dançou no Centro, na Igreja do Rosário. Mas isso foi se perdendo por falta de incentivo e adeptos”, comenta Neves. Nivaldo garante que o Grupo de Congado Nossa Senhora do Rosário, do Rio das Mortes, tem mais de 200 anos, passando as atividades de pai para filho.
Reconhecimento (ou falta de)
“O Congado é a maior expressão da cultura afro na região”, informa Ulisses Passarelli. Os líderes dos grupos são categóricos ao falar sobre subvenção municipal. “Para perpetuar a tradição, precisamos de incentivos. Mas como não há uma política voltada para isso. Aí, o jovem fica perdido ou, senão, participa e desanima”, argumenta o presidente da Associação de Congado do São Geraldo.
Nesse sentido, o secretário de Cultura e Turismo, Ralph Araújo Justino, reconhece que o poder público está em débito com os grupos afro-descendentes. “Precisamos ajudá-los, mas não fizemos nada, até agora. As dificuldades da prefeitura são muito grandes. Pretendemos, a partir de 2011, convocar o pessoal da cultura afro para poder ter uma atuação mais próxima, inclusive com verba do Fundo de Cultura”, afirma.
O diretor técnico do escritório do IPHAN em São João, Mario Ferrari, informou que o instituto não tem nenhuma política municipal voltada para essas manifestações. “Não temos nenhum projeto de apoio, infelizmente”, lamenta.
Mesmo assim, os grupos vão se mantendo com a ajuda da comunidade, com doações e às despesas de seus integrantes. A presidente do Grupo de Inculturação Afro-descendente Raízes da Terra, Vicentina Neves, relatou que chegou a buscar apoio na Secretaria de Cultura. “Mas eles não nos valorizam. Usam, mas não valorizam”, desabafa.“Não só a afro, mas a cultura folclórica também está abandonada”, sentencia Ulisses Passarelli.
Segundo Nivaldo Neves, os movimentos precisam de um local para oferecer oficinas de pintura, alfabetização, aulas de informática e acompanhamento social. “Hoje estamos tentando adquirir um terreno na prefeitura para fazer as atividades. Temos CNPJ, tudo direitinho e legalizado para receber verba, mas não temos nenhum tipo de apoio da prefeitura”, diz o congadeiro.
Escola e sociedade
As escolas trabalham conteúdo afro no final do ano, perto da data da morte de Zumbi. O restante dos anos não se fala sobre a cultura afro. Muitas vezes, os professores não estão adequados a esse trabalho. “Vemos muito preconceito dentro das escolas. Ouvimos relatos de meninos contando que os chamam de macumbeiros na escola por serem inseridos em religião de matriz africana.”, diz Nivaldo Neves.
Dona Vicentina conta que a UFSJ é a única instituição que tenta apoiar os grupos, oferecendo espaço e acompanhamento por meio de cursos. Mas ela ressalta que isso é insuficiente. “A UFSJ nos ofereceu espaço, mas lá descentraliza o movimento, perderíamos nossas raízes do São Geraldo”, afirma.
Inculturação, o paradoxo católico
Com a indiferença das instituições laicas, os movimentos afro se voltam para a Igreja. Dona Vicentina afirma que algumas paróquias abrem as portas para os grupos. Nivaldo e Ulisses lembram, por outro lado, que a aceitação é recente. “Quando começamos, em 94, não éramos reconhecidos pela Igreja. Com o tempo, conseguimos entrar”, confirma o congadeiro.
Certas paróquias realizam as missas inculturadas. O vigário geral da paróquia de Nossa Senhora da França de Resende Costa, Raimundo Inácio da Silva, explica que a missa inculturada é uma forma de resgatar a riqueza da cultura afro-descendente. “Celebramos a Missa Romana, com introduções de elementos afro”, diz.
A Festa do Divino e a Festa de Nossa Senhora do Rosário permitem o desfile de grupos de congado e de cantos africanos. No entanto, o pároco que nem todos os elementos da crença são autorizados. “É fonte de estudo aquilo que pode ser colocado e aquilo que não pode. Há ritos de outras divindades que não batem bem com o catolicismo. Temos cuidado ao analisar o que pode ser acrescentado na liturgia afro para não virar uma mistura de catolicismo, umbanda, candomblé”, comenta Raimundo da Silva.
A Igreja preserva no momento em que abre as portas e permite que as manifestações aconteçam, enfatiza Ulisses Passarelli. “Mas uma coisa é missa inculturada, outra, é uma sessão de Candomblé, Umbanda ou de Quimbanda. São coisas diferentes. Não vão se estabelecer um dentro do outro”, atenta. Esse momento ecumênico é importante no momento em que respeita as diferenças. Isso permite com que as pessoas conheçam a cultura da periferia.
“A Igreja descaracteriza quando cria amarras para a tradição, quando proíbe que certa coisa aconteça ou define como deve acontecer”, critica o folclorista. A Igreja não pode interferir na manifestação, precisa trabalhar em conjunto e não estipular normas. “Ao mesmo tempo em que a Igreja ajuda a preservar, ela descaracteriza. Sempre foi assim. Isso, eu não sei se muda”, opina. “Dos males o menor, porque houve tempo em que eram proibidas certas manifestações”, acrescenta.
São João abriga também terreiros de Candomblé, Umbanda e Quimbanda. O babalorixá do terreiro do Alto das Mercês, Edimar _______, propõe a inclusão do negro “Mostrar que o Candomblé não é só uma religião, mas uma cultura, um ritmo e uma arte. O candomblé é um museu vivo de cultura imaterial”.
“No princípio, sofremos muita marginalização. Porque, em São João, predomina uma religião de origem portuguesa. Tudo que é oriundo do negro ainda sofre uma discriminação muito grande, apesar de ter pessoas aberta ao diálogo”, enfatiza o babalorixá.
O terreiro foi reaberto há três anos. Contudo, ainda não foi regularizado por falta de verbas. Essas casas são, geralmente, instaladas em bairros mais pobres e marginalizados. “Essas comunidades são mais receptivas. Não temos espaço no Centro, onde predomina o cristianismo. Hoje a marginalização do rito é bem menor por causa dos direitos humanos garantidos pela Constituição e pela Justiça. Mesmo assim, ainda há discriminação”, conta Edimar.
A relação com dos terreiros com a religião católica varia entre as paróquias, de acordo com Edimar. “O que difere muito dos evangélicos, que não tem a tolerância de alguns segmentos da Igreja Católica”. Porém, o babalorixá explica que os afro-descendentes foram levados a abandonar suas tradições. “Já é discriminado por ser negro e, também, por sua religião. Muitos tentam branquear sua negritude e os aspectos de sua cultura”, afirma.
Parabéns pelo blog! Prossiga firme na divulgação de nossa cultura. Ulisses Passarelli.
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